sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

A Última Refeição (por Noah Mancini)

Morte de D.João VI



De todos os pecados, o que ele almejava ser perdoado era a gula.A gula. Como é bom comer. Como é bom degustar deliciosas coxas de frango, carnes de todos os tipos que seu império possuía ou maduros abacaxis com imensas “coroas”. Coroa que ele também tinha - em partes. Enquanto mantinha o titulo de príncipe regente cometendo sem hesitar o pecado da gula cuidava de sua mãe louca e fugia para sua maior colônia, para proteger é claro, sua coroa de ouro e de abacaxi. Napoleão ameaçara todo o império português e obviamente todas suas pomposas e deliciosas refeições. O que seria de D. João VI sem se alimentar? Nem as entidades divinas, que sempre o perdoavam pela espantosa fome sabiam responder. Sem sua terra natal dominada por outro senão ele, sobreviveu. Sem estar preparado para o calor abrasador do Brasil ele sobreviveu. Sem a sua insana mãe, porém amada ele sobreviveu. Sem tomar banho durante anos, sobreviveu. E por fim, sem comer – sua mulher, é claro – ele também sobreviveu. O futuro Imperador do Brasil, com todas essas características de sobrevivência, parecia ser um homem muito corajoso. Mas não era. Como todo reles mortal ele possuía medos. Entre os mais curiosos tinha medo de caranguejos, siris e trovoadas.

Todavia ele não tinha medo de comer. Sim, comer. O prazer que ele tinha ao saborear qualquer tipo de comida era indescritível. As gordurosas coxas de frango que os escravos cozinheiros preparavam eram divinas. Quando as chupava, o sulco de tempero em meio à carne o deixava extasiado. As frutas tropicais eram ainda mais saborosas. Colhidas pelos cativos, cada uma com sua característica, deixavam o rei encantado com tamanho sabor. Já as saladas com os mais variados vegetais além de servidas ao almoço, serviam de jantar junto às outras inúmeras comidas. Eram regadas de chuchus, alface, tomates, cenouras, nabos, ervilhas e tudo o que se podia imaginar. Porém não só de carne vive um homem. Ele precisa de se hidratar. D.João adorava vinho – mais ainda, quando tomava em seus copos de cristal. As luxuosas festas dos poderosos portugueses nunca haviam sido tão cercadas de refeições em toda a história dos bailes europeus.

E cercada de nobres também. Nobres. Em todas as dinastias de portuguesas, os títulos nobiliárquicos não haviam sido tão numerosos quanto os que o rei distribuíra no Brasil. E era assim, que a alta sociedade do período joanino vivia, distribuindo favores reais. E comendo.Favores esses que ultrapassavam a imaginação de qualquer um que possa imaginar o absolutismo como ele era. Alguns viravam viscondes por grandes feitos enquanto outros se tornavam barões por motivos misteriosos. A plebe, inocentemente, pensava que muitos títulos eram concedidos como um agradecimento ao “Ponha-se na rua” que os brasileiros eram sujeitados. Sim, “Ponha-se na rua” era o nome popular que haviam dado para as iniciais P.R de Príncipe Regente que era carimbada nas casas escolhidas, quando os portugueses precisavam de moradia, o que se fez despejando inúmeras pessoas. Claro, a corte precisava de um lugar para ter suas refeições. Claro, os nobres e principalmente D.João VI precisavam de refeições.

Mas a festa havia acabado. A Vossa Gulosa Majestade Real tinha que voltar para Portugal.Mas qual o problema nisto? Nenhum, nenhum! Ele não deixaria de comer! Mas dinheiro não era o que importava a ele: raspando os cofres brasileiros, que comida não podia ser comprada? Parte dos gastos da monarquia portuguesa era gasto com suas refeições... não muito, não muito. Maior era a sua voracidade com que devorava as canjas.
A festa já havia acabado e a vontade de comer também. A morte não era mais uma vontade, era um fato.Um fato irrefutável que a gula em pessoa havia sucumbido.A gula havia sido envenenada. Morte por envenenamento... supostamente por laranjas do Palácio de Belém.Ah! As laranjas... Dom João era tão redondo quanto elas...
Mas qual fora sua última refeição? É desconhecida. Não é necessário saber.
A última refeição do rei fora a Morte. E vice-versa.
Ela o havia devorado com tal vontade com a que ele saboreava suas adoráveis coxas de frango.Ela o havia perdoado da gula, pois ela acabava de comete-lo, saboreando-se com a carne do monarca e o levando para o seu lado. O monarca pela primeira vez se alimentava de algo magro e oco que conseguia reter sua vontade: a morte.Não se sentia mais dominado pelo pecado.A majestade perdia sua nobreza, como a Morte era deliciosa!Tão feia quanto sua mulher, mas tão linda quanto suas refeições!Oh meu rei... como dizem... quem ama o feio, belo lhe parece... então que ossos ele enfiava goela abaixo!Quanta miséria de carne!O que tinha na Morte que lhe apetecia? Ela não podia dizer o mesmo: afinal, por onde sairia toda aquela comida que a majestade ingerira durante toda sua vida? 
Sangue, carne, lábios, órgãos, o furor, ossos: tudo isso fazia parte do banquete que os dois se devoravam.Não havia mesa.Não precisava.A alma era a entrada, a refeição principal e a sobremesa!Não havia o corpo, apenas a vontade.Não havia vontade, apenas o desejo incontrolável.Não havia o desejo, os dois se consumiam intensamente.Ah... um grito... um grito... não serviam isso na terra!
A Morte estava satisfeita. D.João também. Aquilo fora uma farta refeição para ambos.
O rei português nunca mais iria precisar de suas coxas de frango.
A morte iria apenas fazer seu trabalho, não iria procurar a vítima perfeita: ele já a satisfizera.
A gula havia desaparecido, como nuvens de algodão doce.
A sua única representação terrena era D.João, o comilão.
Que já havia feito, fartamente, sua última refeição.

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